Era uma vez, repousando entre os braços maternos da Serra da Mantiqueira, um vale maravilhoso habitado por uma tribo dos índios puri. O nome puri significa “gente mansa, pacífica”, e, em harmonia com tal nome, eles viviam ali em plena paz uns com os outros e com a natureza.
No centro da aldeia ficava uma grande pedra, considerada sagrada pelos puris. Chamavam-na “iñan”. E não poderia ser mais simbólico, pois “iñan” significa “mãe”. Sobre a pedra-mãe costumavam abater suas caças e preparar seus alimentos, e ao redor dela se reuniam para comer e festejar.
Também nas reuniões da assembléia indígena, o velho cacique sentava sobre a pedra sagrada e de lá, com sua notória sabedoria adquirida no decurso de muitas épocas, aconselhava acerca das questões trazidas pelo povo.
Foi numa dessas reuniões que o cacique, o qual há muitas luas andava calado e pensativo, revelou à tribo o motivo de sua grande preocupação:
Tendo conversado com respeitados irmãos de outras tribos, tomara conhecimento de uma grande ameaça que pairava sobre o vale. Tratava-se de uma cruel e desconhecida tribo, que vinha causando terror por onde passava.
Era uma gente de pele branca e hábitos bárbaros, que abria caminho derrubando árvores e queimando as matas. Poluíam com seus lixos os rios, e, aos animais, matavam não só para comer, mas às vezes por puro prazer.
Muitas tribos numerosas dotadas de poderosos guerreiros já haviam sido dizimadas pelos invasores. Em seu avanço indomável em busca de ouro e riquezas, inevitavelmente chegariam ao lar da pequena e indefesa tribo puri.
Os índios não dormiram naquela noite. Acostumados a encarar de frente todos os perigos das matas, intimidavam-se agora prestes a enfrentar um bicho novo e atemorizante. Um bicho feroz e voraz chamado... bandeirante.
Poucas luas depois, a profecia se concretizou. Eles vieram com suas armas poderosas, carregando um grande baú recheado de ouro e diamantes, o qual, na sua insaciável ganância, só queriam aumentar mais e mais.
Aos indefesos nativos, a bandeira escravizou, e para as minas levou, obrigando-os a trabalhar na extração de ouro para abastecer seu tesouro.
O líder dos bandeirantes era mais cruel do que todos os outros. Os índios o chamaram Ponã, que na língua puri significa onça, o bicho mais traiçoeiro da mata.
Enquanto os demais forasteiros estavam apenas cegados pela cobiça do ouro, este um parecia mesmo gostar de fazer maldades. Ria-se ao assistir os nativos serem punidos por qualquer rebeldia, gargalhava ao ver os índios velhos se encurvarem sobre o peso das picaretas, divertia-se com o desespero das índias chorando o castigo de seus curumins fraquinhos e a perda de seus maridos, tombados pelo cansaço.
E, sem nada poder fazer para se livrar, os índios resignavam-se em orar ao seu deus sol e à deusa lua. Clamavam ao raio e ao trovão.
Um dia, Ponã, o bandeirante mal, tentou castigar um curumim faminto que lhe roubara um pedaço de carne, mas o indiozinho correu tanto e foi parar nos recônditos da mata, onde ninguém nunca havia ido.
Lá, o espantado curumim deparou com um índio gigante, que dormia despreocupado deitado à sombra da serra.
O curumim pisou num galho seco e o gigante acordou.
- Que fazes nos meus domínios, ó pequenino?
O gigante não parecia mal. O curumim contou-lhe a desgraça de seu povo, mas aquele se mostrou indiferente ao seu sofrimento.
“Sou o último remanescente de minha tribo”, respondeu o gigante, “Há muito vivo aqui, na montanha, escondido e só. As questões alheias não me interessam. Agora vá embora, pois não quero perder minha paz.”
Mas o curumim derramou uma lágrima tão pura que o coração do gigante se enterneceu. Colocando o indiozinho sobre o ombro direito, saiu marchando rumo ao acampamento dos bandeirantes determinado a acabar com a razão do seu choro.
Os invasores tremeram as pernas quando o viram, foi uma correria só. Mas, parecendo temer mais os gritos furiosos de seu líder do que o próprio gigante, pegaram suas espingardas, como Ponã lhes ordenava, e puseram-se a disparar contra o oponente, em direção à sua cabeça enorme.
Ignorando os tiros, o grandalhão arrancou uma árvore e com ela golpeou Ponã, que foi arremessado longe e, quando caiu, não levantou mais.
Bastou derrubar o líder e lá se foi a coragem dos expedicionários. Na pressa de fugir, deixaram para trás até o baú do tesouro, pois suas vidas valiam mais do que o ouro.
Libertos do cativeiro, os puris convidaram seu salvador a ir com eles até a aldeia. Lá, em homenagem ao novo amigo, ofereceram um grande banquete que durou muitos dias e noites . E ao redor da iñan, a pedra-mãe, dançavam a dança dos puris, cantando a derrota do homem branco e louvando a coragem do seu gigante herói. Chamaram-no Lakaré Xatã, que significa braço amigo.
Entre as comemorações, o velho cacique decidiu esconder o tesouro, pois outros poderiam vir à sua procura. O gigante se ofereceu para a tarefa. Já caía a noite quando Lakaré Xatã penetrou na mata escura levando o pesado baú. Os índios esperaram até alta madrugada, mas de lá ele não voltou mais.
Na manhã seguinte, a serra estava mais linda do que nunca, mas nela havia algo diferente: em certo ponto, a Mantiqueira agora exibia os contornos perfeitos da silhueta de um homem, um homem imensamente grande, um gigante, deitado tão tranquilamente como o mais dócil puri.
Uns índios diziam que o gigante fora ferido pelos tiros, sim (só não se viu o sangue devido à enorme distância entre sua cabeça e o chão), e que fora embora para que seus amigos puris não o vissem morrer. Mas tombou lá na serra, onde seu corpo, em vez de se decompor, virou rocha instantaneamente, desenhando na montanha um novo e perene contorno. Ainda outros afirmavam que o Lakaré Xatã partira ileso, ansioso de voltar à sua existência solitária. Mas, diante da ameaça do ataque de outros bandeirantes, sua preocupação com os novos e diminutos amigos o fez ficar. Deitou-se sobre a serra, e lá passou a dormir o sono imenso dos gigantes, pronto a despertar quando novamente os índios e a mata corressem perigo.
E, desde aquele episódio, lá, onde hoje fica o bar da pedra, a aldeia passou a se reunir todas as noites ao redor da pedra-mãe, onde os índios mais velhos não se cansavam de contar aos indiozinhos a história de seu gigante amigo, para não deixar morrer a memória daquele ser especial. A cada noite em que a história era contada, os curumins iam dormir sonhando com aquela tamanha aventura, e, ao acordar de manhã ao canto dos pássaros, olhavam enternecidos para a serra, onde, entre as fendas e picos, para sua surpresa e deleite, por um breve instante, o Gigante Adormecido parecia sorrir.